quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Viúva Negra


VIÚVA NEGRA I

O vestido vermelho levemente colado ao corpo era mais que apenas um vestido vermelho levemente colado ao corpo. Era a tinta da escultura perfeita, viva e alegremente hipnotizante que transitava pela badalada festa literária.
Acostumada a tantos olhares de cobiça, procurava a raridade. Não poderia ser qualquer dos que flertavam abertamente com ela. Não gostava de facilidades. Apreciava o garimpo; a procura fazia o encontro final mais saboroso, pensou, enquanto passava a língua pelos já úmidos lábios vermelhos.
Os cachos também avermelhados escorregavam pelos brancos ombros nus, enquanto ela se movia por todo o espaço disponível. Sabia dos vários pares de olhos gulosos que seguiam seus passos seguros. Apesar de sentir-se lisonjeada, nenhum deles despertava seu interesse.
Gente inteligente, ambiente agradável, homens e mulheres bonitos, alegres, bem-falantes. Música. Poesia. Arte. Sem dúvida, um bom lugar para se estar.
Pediu uma taça de suco de tomate (tinha aversão ao álcool). Sentou-se em uma poltrona que permitia uma visão privilegiada do movimento na sala, e foi simpática com todos quantos se aproximaram dela e iniciaram uma conversa. Gostava da troca literária, embora percebesse, na maioria, outro tipo de interesse, que ela, delicadamente, dispensava.
Quando começava a sentir uma ponta de tédio, ele apareceu. Já tinham conversado em várias outras ocasiões. Ele sempre se afastara após alguns breves minutos em que externava sua admiração. Nunca passara disso.
Alguma coisa, porém, naquela madrugada em especial, soava diferente. Um grão de areia úmida caiu-lhe ao colo, no cumprimento trocado. Dois beijos. E ela reconhecia nele um espécime muito raro. Talvez o suficiente para permitir-se...
Ele ficou mais do que os costumeiros curtos minutos. Disse mais que da costumeira admiração. Ouviu mais também.
E tremeu.
E disfarçou.
E ela notou.
E dentro dela todos os instintos se eriçaram.
E ela tremeu.
E disfarçou.
E ele notou.
E ela não soube se os instintos dele se eriçaram, porque ele, educadamente, como sempre, despediu-se dela, e desapareceu entre os presentes...



O JOGO*


“(...)
Vivendo e aprendendo a jogar
Vivendo e aprendendo a jogar
Nem sempre ganhando
Nem sempre perdendo
Mas aprendendo a jogar...” *





Riu alto, sozinha, e a risada ecoou no apartamento vazio de qualquer outro movimento, que não o dela. Elis, morta, cantava pra ela, sem saber. Passeou pela idéia de um livro exclusivamente de poemas que versassem sobre o ‘jogo’. Considerarei a possibilidade, disse para si mesma, em voz alta, enquanto aspirava profundamente o cheiro do café forte, que acabara de passar.
Nunca se interessara por jogos. Desde criança, a única atração que via num baralho era a chance de brincar de ‘Memória’. Fora isso, nem mágicas a atraíam. Xadrez também era complicado demais. Fundia a cabeça, pouco acostumada ao raciocínio lógico. E também não havia a menor hipótese de se dar bem em qualquer jogo que exigisse destreza motora. Nem pensar!
Riu alto, novamente. Incompetente. Disse para si mesma, lembrando de todas as vezes em que tentara jogar bilhar. Divertira-se muito mas não conseguira encaixar uma única bola sequer, naquele ‘buraquinho’. Riu-se da própria ignorância quanto às nomenclaturas exatas. Não estava interessava nelas mesmo!
Mas o jogo da vida era diferente. Esse não perguntava, nem queria saber se o jogador gostava de jogos, ou se estava ciente das regras e todas as complicadas peças envolvidas. Nada disso. Esse já vinha embutido no ‘ato’. A concepção carregava, em sua mágica, 'O Jogo’, sem direito a manual de instruções.
Enquanto servia o café, pensou na última madrugada. A chuva torrencial, depois de longo período de estiagem, emprestara, então, à terra, um perfume de areia molhada, que fazia nascer na lembrança a imagem do beduíno. O mesmo cuja voz debruçara diante dela ternamente: “O jogo é uma aposta, olho no olho. Até onde apostar? Terá o jogador tanto cacife?”, depois dos dois beijos de despedida e antes de desviar dela o seu olhar. E ela não soubera como responder.
.
.
.
Sobre o tapete da sala, espalhadas desordenadamente, as mais de mil peças de um quebra-cabeças. No ar, além da voz de Elis e do cheiro do café, o perfume de um grão de areia úmido, ainda preso a um certo vestido vermelho.





*"Aprendendo a jogar", composição de Guilherme Arantes
**Dedicado ao sopro do deserto, que avalia a banca, antes de fazer a aposta.



O JOGO II - IMAGINAÇÃO



"(...)
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução
P'rá que esse nosso egoísmo
Não destrua nosso coração.
(...)"*





Teve vontade de pão quente enquanto ouvia a canção do século passado. A padaria ficava a duas quadras do prédio onde morava. Chegava a sentir o cheirinho de pão fresco. Hummmmmm.... "Será só imaginação?", ele cantava. E não era só ele que se perguntava... não era...
Olhou pela janela. A previsão do tempo avisou sobre uma pancada de chuva, no final da tarde. O céu carregado de grossas nuvens negras. Vento forte. O dia muito abafado pedia um pouco d'água. Seria bem-vinda, pensou, enquanto calçava uma rasteirinha e jogava um vestido branco sobre a pele nua. Com tanto calor, não suportava nenhum tipo de tecido sobre a pele, dentro de casa. Tornou a olhar pela janela, calculou o tempo de ida e volta e concluiu que estaria em casa, com o pão quentinho, antes do temporal. Só o dinheiro e a chave, na mão. Saiu.
Quando atravessou a rua, sentiu os primeiros pingos de chuva grossa. Pensou em voltar, mas eles pareciam cair tão lentamente, que ela decidiu ir adiante assim mesmo. Aproveitaria para deixar que o vento refrescasse sua pele...
Uma quadra e os céus se abriram generosamente. Pensou em abrigar-se, mas, de repente, escolheu ficar. Literalmente. Ficar.
Já era tardinha, a maioria da vizinhança já voltara do trabalho e escola. Os poucos que ainda estavam na rua correram para as lojas e confeitarias. As luzes dos postes foram sendo acesas. Ela escolhera ficar.
A água ensopou o vestido instantaneamente, colando o tecido à pele. E ela ficou.
A água cobria-lhe por inteiro. Afastava a secura do dia, o peso do dia, o fogo do dia.
E ela ficou.
A água escorria por seus cabelos, pingava, abundante, por todo o seu corpo.
E ela ficou.
Nos ouvidos, a canção ainda tocava, mas diferente. Era a voz do al bedu que não perguntava, mas afirmava: "... a imaginação é o moto das nossas vidas... é o que nos faz continuar em frente".
Enquanto a chuva lavava o calor, pensou na porta, de início entreaberta, agora escancarada. Aberta para trás, sem travas, sem chaves, sem proteção alguma. Nada. Jamais estivera assim.
E ela ficou.
A chuva, assim como veio, passou.
E ela ainda ficou.
Té que o último pingo caiu-lhe na dobra do pescoço e escorreu, lentamente, por entre os seios firmes.
Agora ela podia comprar o pão quente, sentar no chão da sala e olhar, maravilhada, o quebra-cabeças montado pela metade, sobre a mesa.
"Será só imaginação?"







*"Será" - composição de Renato Russo







O JOGO III - VESTÍGIOS





Mas a vida não oferece suas rédeas pra gente, toda hora... ah, não mesmo! De vez em quando ela resolve assumir o controle e aí a gente pode espernear, a gente pode gritar, a gente pode chorar e dizer que não aceita, de jeito nenhum. A danada da vida dá de ombros e faz o que pretendia fazer. Nesse caso, soprar-lhe de volta as imagens das cenas vividas. Foi assim que aconteceu naquele domingo.

Ela pensava.
Não, não era aquele turbilhão de confusas sensações.
Ela sentia.
Não, não era uma vontade enlouquecida de estar com ele de novo.
Ela sabia.
Não, não era igual a nada que tinha vivido até então.
Ela percebia.
E ele?
Teria perdido, ele também, as rédeas da vida?


Sentada no chão, uma xícara de chá de hibiscus, bem quente, na mão esquerda; observava o quebra-cabeças. Passou o braço direito, lentamente, sobre a mesinha de centro, onde parte dele estava montado. As peças foram caindo, uma a uma, no chão, desprendendo-se das outras. Em camera lenta o mistério se refaria, pensou, esperançosa...
Mas a vida resiste. Não gosta de entregar assim fácil, o comando dos dias aos mortais e suas paixões, por isso deixou plantado no peito dela o grão de areia úmido. Um grão em cuja superfície estava gravada a noite em que o al bedu a tocara....


* * *

Recolheu as peças espalhadas e guardou-as na caixa. Organizou o ambiente e tratou de ocupar-se com coisas mais urgentes. Tinha muito trabalho atrasado para colocar em dia, também queria trocar de lugar alguns móveis, fazer uma 'limpa' em suas 'tralhas', livrar-se do que não queria mais, rasgar papéis antigos, recolher velhas fotografias, tentar encontrar os esboços de nu feminino, que tinha guardado num envelope qualquer, e agora não conseguia mais lembrar onde, nem porque, muito menos quando...

Mas a vida resiste...

Sobre a poltrona, no quarto, o vestido vermelho, amarrotado. Ficou ali, parada diante da poltrona. Não mexeu nele de pronto. Sobre a roupa, um punhado de pérolas soltas.
No grão de areia estava gravado o riso dos dois, enquanto recolhiam as pequenas contas espalhadas sobre a grande cama, e descolavam algumas do suor da pele um do outro. Passou a mão sobre a peça e nela sentia a força do homem que a havia ajudado a despir-se. "Quando aquele que toca o faz, desarma-se demasiado, e aí se percebe muito da personalidade e do moto dele". Quanto da sua personalidade tinha sido exposta? O que ele sabia a respeito dela agora? E ela, até onde teria alcançado esse homem?
Um frio percorreu-lhe a espinha e apesar de todos os esforços para não pensar, as lembranças vinham aos borbotões, desordenadamente, sem o menor respeito à cronologia dos fatos. Recortes do acontecido. Partes de ditos beijados: "Já notaste que não precisas de muita força pra conseguires o que queres, né?" .

E o grão de areia rolando entre os dedos dela. Sorrindo; com o sorriso dele...






O JOGO IV - LAÇO


No banheiro, não acendera as lâmpadas. Preferira a luz das velas perfumadas, que espalhou em pontos estratégicos. O vapor, a luz difusa, o perfume no ar, emprestavam ao ambiente o tom de leveza que ela tanto apreciava. O som da água quente do chuveiro confundia-se com o da chuva que tamborilava, festiva, no telhado. No apartamento pequeno, além das tantas águas, uma mesma canção tocava, ininterruptamente. No coração, além das tantas cicatrizes, um mesmo nome se gravava mansamente...
Todas as letras povoavam o universo dela:
Todas as letras do nome dele
Todas as letras das falas dele
Todas as letras das canções que o traziam para ela
Todas as letras do universo dele.
Enrolou os cabelos molhados na toalha felpuda, vestiu o roupão e quase pode sentir de novo o abraço macio do beduíno. Diante do espelho, parou. Olhou-se longamente, perdida entre as névoas provocadas pelo calor local. Névoas que embaçavam sua imagem, tanto quanto era pouco visível agora a última ferida no coração. Escreveu o nome dele no espelho, com o dedo, podendo ver-se melhor nos vãos das letras traçadas. Sorriu para si mesma e para a metáfora. Ela, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, escrevendo o nome de um homem no vapor do espelho. Sorriu de novo, agora com uma pontinha de dor de saudade.
Não, eles não deixaram de estar juntos depois da festa e do que a sucedeu. Aliás, estavam tão juntos quanto no momento em que foram um só. Ainda assim ela sentia saudade. E sentir a deixava mais forte, alegre, com maior energia, e enorme fome de vida.
Mergulhada em reflexões, não ouviu o telefone. Secou os cabelos, vestiu a calça jeans “velha de guerra”, a blusa branca, curta, que deixava só o umbigo de fora, apanhou o cinto com detalhes em pérolas minúsculas, mas ficou com ele nas mãos. Não, não usaria as pérolas. Uma rasteirinha, maquiagem leve, quase imperceptível. Batom cor de boca, a bolsa. Ia saindo quando percebeu que a secretária eletrônica piscava. Parou para ouvir o recado. “Somos diferentes, sabia?”. A voz dele.
As pernas tremeram. Quando é que ele ligara, se ela não tinha saído de casa até agora? Verificou a hora no aparelho. Droga, porque não ouvira a campainha chamando? Voltou. Ouviu de novo. Três vezes. “Três beijos... daqueles...”. E ela teve que fazer força pra lembrar o que ia, mesmo, fazer na rua. Saiu, ainda ouvindo a voz dele. Nem o barulho infernal da cidade, em pleno horário comercial de dia útil atrapalhou a voz dele, dentro dos ouvidos dela. Tão fundo que ecoava por todo o seu corpo.
Sim, eles eram diferentes. Sabiam que alguma coisa muito forte os aproximara. Sabiam que essa mesma coisa muito forte os mantinha juntos. Sabiam que a união dos corpos tinha sido muito mais que simplesmente um ato de prazer. Sabiam que não havia como evitar. Nada. Nem queriam.
No Shopping, comprou flores do campo, para o vaso da sala, e incenso de canela. Deliciou-se com uma exposição de fotografias antigas. Encontrou uma amiga de infância e riram muito, lembrando das barbaridades que faziam então... Mais a outra, que ela. Ela sempre fora meio “bocaberta”.
Mais tarde, enquanto fazia um lanche, com os pensamentos girando em torno do al bedu, e sentindo-se plena de satisfação, aproveitou para escrever mais algumas linhas do romance que pretendia publicar no próximo ano. Um capítulo com o cheiro do beduíno... E começava assim:
Na despedida, a saudade já começou a doer nos dois. Não conseguiam deixar de se olhar. O tempo juntos fora tão precioso que merecia ser gravado na pedra. Mas como gravar algo tão subjetivo? Como registrar um momento inenarrável? Diante da impossibilidade de expressar o que ia dentro deles, dançaram. No meio da rua. Sem música. Sem importar-se com os transeuntes. Sem importar-se com nada, além do desejo de eternizar o momento de qualquer forma fora do comum. Eles eram diferentes. E sabiam. Os olhos dele presos aos dela. As mãos dela presas às dele. A vida de um soprando na vida do outro. O dia, com gosto de aniz.
Fechou a agenda antiga e sentiu a dor aguda da saudade “... me faz encher o peito de sensações”.
Precisava voltar para casa. Ele tornaria a ligar, ela sabia.



O FIM DO JOGO V




Cansada, entrou em casa quase desanimada. Precisava de um banho. O dia fora longo. A edição do último romance estava atrasada e ainda tinha um quadro de nu feminino por terminar.
Foi tirando a roupa enquanto se dirigia ao banheiro. Calor insuportável. Água, precisava de água. Passou pela cozinha, um cubo de gelo na nuca, na testa, no pescoço. Divertiu-se sentindo-o derreter na pele. Não sabia estar tão quente assim. Riu alto, e a risada gostosa ecoou pelo apartamento. Hummmm... silêncio muitos decibéis acima do limite pode me deixar surda, pensou, irônica, enquanto procurava uma canção apropriada para o momento. Escolheu “Água”*, composição de um talentoso artista pernambucano, Glauco César, amigo seu. Era disso que ela gostava. Ousadia. Diferença. Criação. Ah, a vida dela toda girava em torno do belo.
Abriu o chuveiro, cantando junto a canção que escolhera.
Água. O al bedu fora o oásis no deserto dela. Sorriu. Brincou com o líquido levemente morno do chuveiro, enquanto lembrava dos cabelos dele. Curtos. Do ar sério e compenetrado dele. Da serenidade dele. Serenata. Pensou em escrever, mais tarde, um poema para esse homem. Apetitoso pescoço. Braços que a seguravam firme, sem forçar. Não precisava. Ela largava o corpo todo no abraço dele. Ela era dele.
Assim refrescada, assim molhada, assim nua, saiu do banheiro. Não se importava com os rastros dos pés dela, no chão. Eram só pegadas na areia do deserto que ficara pra trás.
Quando jogava um vestido leve sobre o corpo, assustou-se com a campainha do telefone. Atendeu ainda em devaneios. Mas...
era ele
beduíno sussurrante
dono de dunas
de areia escaldante
no corpo dela
Depois da rápida conversa, correu...
Para a porta
Porque ele,
O beduíno,
Já subia
As escadas
Ele sorria um sorriso de menino em peito largo de homem. Ah, a vida dela toda girava em torno do belo...
Cozinharam juntos. Jantaram juntos. Lavaram a louça juntos. Na sacada minúscula, ela sentou no colo dele. E olharam, juntos, a noite. Trocaram suas histórias. Brindaram, com suco, juntos. Riram. Escreveram. Criaram. Nasceram. Juntos. Quase manhãzinha, acompanharam o giro da Terra, pra ver o Sol, juntos. E concordaram que já era hora de irem para a cama. Juntos.
E se amaram. E nem os mais perfeitos falsificadores seriam capazes de imitar a unidade que existia entre ela e o al bedu.
Lá fora, a vida rolava faceira as ladeiras da vida ligeira que enrola o novelo de lã do tempo gasto ou perdido invejado ou desperdiçado ou abandonado ou cobiçado invejado diluído estilhaçado entre os vidros dos automóveis que passam invejam que passam que passam invejam que pesam e passam invejam e não pensam e passam e pesam invejam e passam e passam e passam invejam e esperneiam e passam e passssss
Cá dentro, um quebra-cabeças dentro de uma caixa. Montado. Inteiramente montado.
Cá dentro, um grão de areia, um romance, um mistério desvendado.
Cá dentro, uma pérola presa à manta amassada aos pés da cama.
Cá dentro, toda a paixão que há no mundo.



“Ter você é um sonho...” ... É... Ter você... É...

Terminada a escrita, nos primeiros 10 segundos do dia 01.08.2008



















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